A propósito da Exposição de Arte Moderna em Belo Horizonte
Por Geraldo Queiroga Aroeira
É opinião corrente aqui em Belo Horizonte, tanto entre os que visitaram a Exposição de Arte Moderna como entre aqueles que, apenas, leram as piadas de alguns cronistas nossos, que a Pintura Contemporânea, ou seja, Arte Moderna, se reduz a uma única escola, a Surrealista. O “Negro” de Portinari, a 2ª classe de Tarcila, e outros, de outros autores, foram por eles classificados como Pintura Acadêmica, Arte Antiga, ou Clássica. Para eles, que, certamente, travaram conhecimento com a arte de Salvador Dalli através de alguma reportagem fotográfica do “O Cruzeiro”, Arte Moderna é somente aquilo que não compreendem, deixando-os irritados, pelo terror de se tratar de algo superior à sua superestimada percepção. Aquilo que está ao seu alcance, por não lhes exigir senão sentimento, dispensando-lhes o raciocínio, por ignorância ou por má fé, não admitem que seja Arte Moderna.
Dentro da Pintura Contemporânea, dentro mesmo da Exposição com que nos presenteou a inteligência do Prefeito Kubitscheck, existem várias escolas, várias tendências; porém, “O Negro” é tão Arte Moderna quanto o “Galo”. O que há é que um representa uma fase e o outro é fruto de outra fase da vida artística de Portinari, esse “Globetroter” da Arte e da Beleza.
Esse discutidíssimo Portinari, como todo gênio, é um eterno insatisfeito. Ao atingir o máximo de perfeição dentro de uma técnica, ou de um estilo, depois de haver esgotado um manancial de Beleza, não descansa, não se eterniza sobre os louros alcançados, partindo, incansável, em busca de outros alvos, mais elevados, mais distantes, atrás do “Eldorado” da Arte, que ele próprio coloca sempre à sua frente, distante, inatingível É o “Caçador de Esmeraldas” da pintura brasileira.
Outro ponto aparentemente obscuro para a nossa gente, é o seguinte: A Arte Contemporânea não é, como crêem, uma arte para o povo, e, sim, pelo povo. É aí que encontramos a maior, a principal diferença entre as chamadas Arte Antiga e Moderna. Enquanto aquela é uma arte para a maioria, em favor da minoria, esta é, justamente, o contrário.
Não se aprecia uma obra de arte apenas com os olhos, mas também, e principalmente, com o coração e a inteligência.
Os escravos não leram, não ouviram e nem compreenderiam Castro Alves, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e outros abolicionistas, e, no entanto foi decretada a “Lei Áurea”.
Portanto, a acusação de “fascismo” feita aos artistas modernos é ridícula, e torna suspeitos os acusadores.
O verdadeiro artista se inspira no mundo real, para criar um outro mundo maior e mais belo. Num criador, e não um copista. Miguel Ângelo nunca se preocupou com a semelhança entre suas obras e os originais; entretanto, passou à imortalidade. A alguém que lhe perguntou, certa vez, se os Medici eram, realmente, como os havia esculpido, respondeu o grande Buonarroti: —“Quem, daqui a mil anos, será capaz de dizer que eles não eram assim?”
Em pintura, o retrato não pode ser a reprodução da fisionomia física apenas. Do artista, exige-se muito mais. A par da fisionomia material do retratado, deve-se estampar na tela sua fisionomia
moral e intelectual. Se a pintura fosse o que querem que seja, teria desaparecido com o advento da fotografia.
Enchemos a boca com o vocábulo Liberdade, e procuramos sufocá-la onde quer que apareça. Por não possuirmos um espírito livre, esforçamo-nos, invejosamente, por engaiolar a inteligência de quem o tem. Não admitimos a poesia livre das algemas da métrica e dos grilhões da rima, não apreciamos o músico isento de preocupações de laboratório, e a todos e embatemos. Não percebemos que a águia precisa do espaço livre e de um cenário grandioso para viver. Queremos transformá-la em pássaro doméstico, na gaiola dourada das fórmulas e das supostas regras da beleza. Quando um artista despreza as “receitas” já consagradas, e que reduzem a arte a uma simples “arte culinária”, taxamo-lo, desdenhosamente, de louco, por desconhecermos que não existe gênio sem um toque de loucura. Orgulhamo-nos do nosso “equilíbrio”, pavoneamo-nos de nossa mediocridade, exibindo-a como algo de grande e invejável. Somos um rebanho que, para marchar, espera que o “cabeça” escolha a direção. Somente apreciamos o que já foi consagrado há anos, por temermos a responsabilidade de um juízo original, que pode não estar certo. Falta-nos sinceridade em nossos gostos, não confiamos em nosso paladar. Tudo que é novo e revolucionário, repugna à nossa “pituitária mental”. Assistimos, beatificamente, a um concerto que nos caceteia, porque ouvimos dizer que o artista é um gênio. Se uma obra famosa não nos agrada, escondemos o fato covardemente, sob o manto da hipocrisia. E se alguém, mais sincero, que tem a coragem de desprezar a opinião da maioria, e contra ela se insurge, somos os primeiros a acusá-los de bárbaro e ignorante.
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Uma iniciativa brilhante, digna dos maiores elogios, é a realização de conferências sobre arte que o talento de Menegali está pondo em prática, com o valioso apoio do Prefeito Jucelino Kubitscheck. Lamentamos, porém, a pouca divulgação dada às mesmas. Realizadas na biblioteca pública, recinto acanhado em suas dimensões, sem mesmo serem publicadas, Ana íntegra, pela imprensa local, seus benefícios serão bem menores que os que seria de se desejar. Deveriam ter um caráter mais popular, para produzirem maiores e melhores frutos. São elas verdadeiras lições de arte, e, o questionário a que, no final, a assistência submete o conferencista, vale mais que quantas críticas estéreis, pela vantagem considerável de dissipar as dúvidas e dissolver a confusão lançadas no espírito do povo por pessoas que ignoram, totalmente, o móvel e a finalidade da arte, reduzindo-a ao papel ignominioso de um simples divertimento sem compromissos.
Santa Rosa, Sérgio Millet, Di Cavalcanti, e outros, são mestres nos quais podemos confiar. Tem talento, cultura e são conhecedores do assunto.
É muito agradável ouvir-se uma anedota contada por pessoa hábil nesse mistér, porém, muito mais útil é ouvir-se uma lição dada por um mestre competente. E, se pedirmos lições a um “Espirituoso”, ou anedotas a um sábio, corremos o risco de formar opiniões absurdas, ou de morrer de tédio. “A César o que é de César”.
Um dos trabalhos que maiores e mais ferinos comentários despertam, dos esposos no Edifício Mariana, foi o “Frevo”, de Augusto Rodrigues. É naturalíssima essa reação, pois, mesmo no Rio [de Janeiro], ouviram-se comentários idênticos aos daqui, por ocasião de um dos salões anuais. É que o povo, que só vê a obra depois de terminada, ignoram os processos de sua realização e as fases por que a mesma passou antes de chegar o ponto no qual a vemos. Os dois trabalhos denominados “Frevo” são a fase primária do desenho, simples estudos, e, não, obras terminadas, definitivas.
Alguém, a quem tivemos ocasião de explicar por que o dançarino do “Frevo” tem as formas tão sumárias, disse-nos que, nesse caso, não deveria haver sido exposto um trabalho não terminado; entretanto, é um dos entusiastas da “Sinfonia inacabada” de Schubert.
“Durma com um barulho destes!…”
A Arte Moderna, para ser apreciada, não exige cultura nem tampouco conhecimentos técnicos, mas, tão somente, a compreensão. Enquanto classificarmos a arte, egoisticamente, como uma fonte de prazeres, seremos os mais ferrenhos adversários da Arte Moderna, em todas as suas manifestações.
Um livro que muito bem poderia fazer as pessoas sinceras, que deseja, honestamente, ter uma opinião segura sobre a Arte Moderna, é a coleção de ensaios de Sérgio Millet, denominada “Pintores e Pinturas”. Lá, vemos uma descrição de como nasce um quadro, desde sua gestação no cérebro do artista, até sua realização final.
Em muito poucos sonetos, rigorosamente clássicos, existia tanta poesia como nestes versos, nascidos da sensibilidade e do talento multiforme de Laus, um amigo que choramos:
“O uso de cactus
sobre a mesa vazia,
à hora quente do meio dia,
fez um deserto
só para mim!”
Quem, como nós teve a ventura de conhecer Laus, e de com ele privar, sabe o quanto de sinceridade e de idealismo sadio existe nos artistas modernos, caluniados e perseguidos por aqueles a quem mais amam – a Humanidade e a Vida.
Somos poucos? Que importa, se somos fortes e sinceros?… Galileu era um só, contra toda a humanidade. O verdadeiro artista luta sempre contra tudo, pela sua arte. Laus morreu desenhando e dizendo num poema:
“Respeito, meus senhores, à memória
de quem morreu a longo prazo.
Quase dez anos!…”
Foi o canto do cisne daquele para quem havendo sido a vida uma madrasta, amou-a com carinhos de filho extremoso.
E há quem duvide da sinceridade de tais criaturas e despreze suas obras, filhas de suas dores. “O artista realiza mais, porque sofre mais”, disse alguém, talvez com razão. Aquele que sofre está mais apto a compreender as dores e as lágrimas dos demais, e consolá-las com sua obra e seu amor.
Disseram de nós, que somos um grupo ralo de artistas nacionais. Os apóstolos eram doze, e o mundo fez-se cristão.
Fim